Zélio Alves Pinto |
CARATINGA – Não pense chamar Zélio Alves Pinto, 81 anos, de ‘senhor’. Ele não fica bravo, ele se espanta, depois acha graça e por fim revela que poucos o tratam assim. Mas sua cordialidade e senso de humor são tamanhos que até mesmo um estranho passa a chamá-lo de “você” repentinamente. Assim foi o bate-papo que ele teve com a equipe do DIÁRIO na última segunda-feira (19).
Zélio Alves Pinto esteve em Caratinga para a 15ª edição do Salão de Humor, evento criado e organizado por Edra. Zélio foi o homenageado desta edição e elogiou muito o nível dos trabalhos expostos. Para ele, a charge é capaz tirar as roupas das autoridades para mostrar as verdades dos fatos.
BIOGRAFIA
Zélio Alves Pinto nasceu em Conselheiro Pena, Minas Gerais, em 1938, ainda criança seus pais se mudaram para Caratinga. Zélio é pintor, desenhista, escultor, tapeceiro, publicitário, programador visual, artista gráfico, pesquisador, cartunista, escritor e professor. Ele cursou a Escola Superior de Jornalismo. Estudou pintura na Academie La Grande Chaumière, em Paris, cidade onde realizou sua primeira individual, na Maison du Brésil, em 1962 e trabalhou como correspondente de imprensa da revista O Cruzeiro.
Além das atividades jornalísticas e artísticas, participou de movimentos culturais e desenvolveu experiências em produção teatral. Colaborou em diversas publicações, tais como A Cigarra, Senhor, Revista da Semana, Jornal do Brasil e O Pasquim. Entre 1969 e 1976 foi produtor da TV Cultura. Em 1985, faz parte do júri do 16º Panorama de Arte Atual Brasileira.
Recebeu bolsa de estudos Fulbright/Capes com a qual desenvolveu uma pesquisa em Nova York, entre 1986 e 1987. Foi diretor do Museu e Arquivo do Estado de São Paulo nas gestões de 1982 a 1986 e 1991 a 1993. Foi também secretário adjunto da Secretaria de Estado da Cultura - SP, nos anos 1995, 1996 e 1997. Foi secretário executivo da Comissão Paulista para os 500 anos do Brasil.
Organizou o Salão Mackenzie de Humor, o Salão de Humor de Piracicaba e a Exposição Brasileira de Filme de Animação. Em 1991, lançou o desenho animado As Lentes Mágicas, uma fábula amazônica, na Bienal Internacional de Quadrinhos no MIS/SP. É casado com a cartunista Ciça. O casal teve três filhos: a artista gráfica Ana Cecília, o dramaturgo Pedro Vicente e o ator Fernando Alves Pinto.
A ENTREVISTA
O senhor exerce várias atividades. Em qual delas o senhor se sente mais realizado?
Eu gosto muito de ser senhor (risos). É raro me chamarem de senhor. Fui chamado de senhor e fiquei satisfeito. Se chamar minha mulher de senhora, ela responde que ‘senhora está no céu’. Mas quanto à pergunta, me sinto mais realizado como escritor. Gosto muito de desenhar, virei desenhista por culpa do meu irmão. Aliás lá em casa a culpa é sempre do Ziraldo. A culpa sempre recai sobre o irmão mais velho. Foi o primeiro a ganhar dinheiro. Foi para Belo Horizonte e trabalhava, ganhava seu dinheiro e nós achamos que isso era uma profissão. Seguimos esse caminho e quebramos a cara. Já como escritor é muito mais difícil de ganhar dinheiro. Cartunista ganha mais dinheiro, vide o Edra, que é rico, poderoso, senhor das montanhas mineiras só fazendo gracinhas (risos). Mas eu não consegui ser engraçadinho, fiz o máximo que eu pude. Mas gosto mesmo de escrever. Acho que é a arte mais difícil. Consegue ser mais difícil que a pintura, que também me fascina muito. Hoje exerço a atividade de pintor, que não está entre as atividades reconhecidas pelo Ministério do Trabalho. Quem nasce para marginal não tem alternativa.
Você participou de um projeto importante, que foi a reformulação gráfica da Folha de São Paulo. Como se deu este projeto?
Eu morava no Rio de Janeiro e o Pasquim estava com um sucesso muito grande. A Folha de São Paulo tinha sido trocada de dono e entrou um cara chamado Cláudio Abramo, um grande jornalista brasileiro, falecido há alguns anos; e ele fez a reforma da Folha. Ele montou uma equipe, selecionou pessoas de vários lugares. Ele achou o meu nome no Pasquim e perguntou para minha mulher, que à época colaborava com a Folha. Minha mulher falou que estava trabalhando num atelier em casa e o Cláudio fez o convite. Devo à minha mulher, minha ida para São Paulo. Culpo-a todos os dia por isso (risos). Quando olho para São Paulo nublado, eu a culpo e falo ‘poderíamos estar no Rio de Janeiro com aquele sol’. Então, viramos paulistanos, aliás era já era paulistana. Eu que virei paulistano definitivamente e já estou até com sotaque. Daqui a pouco estou falando que nem italiano.
E como lidou com o advento da internet?
O advento da internet resolveu todos os problemas. Quando a internet começou a ser implementada, eu morava em Nova Iorque, dirigia um jornal que era um jornal bilíngue. Pra mim foi uma mão na roda. Fazendo um jornal bilíngue, mesmo nos primórdios da internet, as pessoas no Brasil podiam ser correspondentes, podiam me mandar matérias com agilidade. Ainda não tinha a rede mundial, mas dava pra se comunicar. De Nova Iorque você tem uma visão do mundo bastante interessante, melhor do que de Caratinga (risos). Por isso que eu sugiro para todo caratinguense que passe pelo menos uma semana em Nova Iorque. Voltando a internet, mudou da água para o vinho, eu sofria para fazer o jornal e de repente ficou simplíssimo. Nossa gráfica era em Nova Jersey e eu mandava tudo por e-mail. Realmente foi uma mudança, todo o pessoal da área de comunicação passou a ser outra coisa.
Me recordo que quando eu trabalhava Folha, era o primeiro a chegar e recolhia o telex. Entrava na redação durante a noite e era uma barulheira, telex chegando. Lia todos eles e na hora de selecionar as matérias, 50% jogava fora. Descobri que dava pra fazer outro jornal somente com estes telexes. Aí sugeria pautas para as editorias. Então, surgiu essas colunas duplas que marcam os jornais. Na verdade não fui eu quem inventei, foi o Jornal do Brasil. Eu trouxe para a Folha. Tinha a coluna do Castello no JB, que usava muito desses telexes. Quando eu cheguei na Folha, ela era linotipo, tinha uma metalúrgica no andar debaixo de onde ficava a redação. Você entrava lá e parecia a oficina do Zé Ferreiro, da rua Nova, que era uma ferraria dos meus tempos de menino. Você entrava e sentia aquele cheiro de gusa. A única coisa boa que tinha naquela metalúrgica, eu entrava lá e me lembrava de Caratinga. Pouco tempo depois houve a composição a frio, que foi um avanço incrível. Enfim, a internet mudou as nossas vidas, só não mudou as nossas mulheres (risos), mas com a internet ficou mais fácil ver as moças né.
Você é um dos criadores do Salão de Humor de Piracicaba. Porque o humor, a fina ironia ainda causa tanto incômodo?
Isso é uma herança colonial. Quando surgiu a charge, na França, estava lá um brasileiro. Era um nobre brasileiro que morava em Paris e que era professor de desenho. A palavra charge é francesa, significa ‘carga’. Esse cara se chamava conde Araújo Porto Alegre, ele voltou para o Brasil e fez o primeiro folheto de humor. Isso em 1836 ou 1837. E a primeira charge publicada no Brasil foi uma ironia com a família real, feita por esse conde. Então, nossa tradição natural é ironizar as autoridades. Isso é uma coisa muito saudável, a autoridade tem que ficar nua.
Alguém tem que tirar as roupas das autoridades para mostrar as verdades dos fatos. E o cartum tem essa capacidade. Sobreviveu galhardamente ao golpe de 64 graças a linguagem metafórica do humor. Os militares não tinham como se sentirem agredidos, pois era uma ironia. Eu não estou xingando sua mãe, estou fazendo uma ironia. Não podem prender por ironizar, embora não levassem isso em consideração e prendiam assim mesmo, se possível, ainda quebravam o pau. O pessoal do Pasquim que o diga, cem dias de cadeia. Era uma perseguição.
Hoje vivemos um dos mais longos períodos sem termos uma publicação satírica, que ironizasse o governo. Desde que o Pasquim fechou foram feitas várias tentativas. O Salão de Humor é uma dessas tentativas que conseguiu fazer esse espírito crítico entre os colaboradores e os criadores. Foi o espaço que sobrou para o cartunista e o chargista. Dentre eles este de Caratinga, é muito importante preservar este instrumento para a própria democracia. Lá em Piracicaba surgiu assim. Piracicaba era uma cidade politicamente contrária ao governo. Tanto que as pessoas que me convidaram para fazer este Salão, o prefeito era do MDB, que naquela época era a resistência. Arena era o governo. E quando me convidaram e vi que era o MDB, disse ‘Tô nessa’. Era um pessoal muito bom, se não fosse isso não conseguiria fazer, já que não sou o Edra (risos).
Este ano o Salão de Humor de Piracicaba fez 45 anos. A turma de Piracicaba é muito animada e muito solidária. Eles já perceberam a importância que o Salão trouxe para cidade. A questão da visibilidade. Para se ter uma ideia, certa vez estava na Suíça e comprei uma passagem de trem, leito. E o cara que ocupava o outro leito da minha cabina era um indiano. Eu disse que era brasileiro e ele perguntou se conhecia ‘Piiraaacicaaba’. Nessa hora pensei, não é possível, até aqui pô? É que ele era comprador de açúcar e Piracicaba foi um município grande produtor de açúcar. Tinha muitos engenhos. Aliás, hoje o Salão está localizado num desses engenhos, que foi abandonado na hora que Pernambuco e outros estados passaram a ser fortes nessa produção.
Mas esse conjunto de circunstâncias levou ao Salão de Humor de Piracicaba e hoje o Salão de Piracicaba é irreversível, é considerado um dos mais importantes do mundo. Mas depois de 45 anos, até eu fiquei importante (risos).
Você é o homenageado desta 15º edição do Salão de Humor de Caratinga? Qual sua avaliação dos trabalhos expostos?
Eu fiquei muito impressionado com a qualidade dos trabalhos. A quantidade eu não vi, eu vi o que foi selecionado. Mas essa quantidade é que dá visibilidade. Hoje Caratinga é conhecida no Irã, no Afeganistão. Tem um afegão que fez um cartum que é ótimo. Um belga fez um cartum sobre o nosso presidente que é melhor do que o feito por qualquer chargista brasileiro, que sente na pele os efeitos do malfeito. Isso (Salão de Humor) é um tesouro que Caratinga tem e não sabe que tem.
Em 2010, foi lançado o livro ‘Zélio, 50 anos de uma aventura visual’. Vai ter uma edição atualizada para os 60 anos?
Não, só a daqui outros 50 anos (risos). Um livro daquele para ser feito demora 50 anos no mínimo. Na verdade, por menos bom que você seja, mas ao longo de 50 anos você reúne 400 páginas bem-feitas. E foi isso que eu fiz. Se minha produção fosse mais intensa, meu livro teria 200 páginas, mas foram só 150. Mas quem sabe ano que vem, com 60 anos de carreira, quem sabe...
O senhor disse que foi influenciado pelo irmão mais velho (Ziraldo). Que conselho daria para o jovem que quer se enveredar pelos caminhos das charges?
Se forme em medicina e depois vá fazer cartum. Esse conselho não é meu, é uma adaptação de um conselho dado por Salvador Dali, “fique rico e depois vire artista”.
Diário de Caratinga / 25 de agosto de 2019
Entrevista de Zélio ao Diário de Caratinga |
Ao lado do cartunista Edra, criador e organizador do Salão de Humor de Caratinga |
Feras do cartum: Edra, Zélio, Ziraldo e Ique. |
Edra, Zélio e José Horta, editor do Diário de Caratinga |